Carta aberta de psicólogos contra a decisão da Manada

1790 signatários

Carta aberta de profissionais de psicologia e psiquiatria ao Ministério da Justiça e ao público.

A respeito da sentença proferida sobre os cinco homens condenados por crime de abuso sexual durante San Fermines e do debate que se trava nestes dias, a partir de nossa profunda e enérgica rejeição da sentença, o abaixo-assinado emitiu declaração preparada por profissionais de psicologia e psiquiatria, entre os quais especialistas em trauma e tratamento psicoterapêutico de vítimas de várias formas de maus tratos, abusos sexuais, abandono e negligência, além de especialistas em sexologia, violência de gênero e sexismo.

Com esta afirmação, que reúne a voz de mais de 1800 profissionais da psicologia e psiquiatria que se reuniram em um grupo criado para esse fim, queremos atingir um duplo propósito: (1) Fornecer informações científicas que ajudem a esclarecer aspectos problemáticos da este caso; e (2) Realizar uma reflexão baseada em evidências sobre o sistema patriarcal e as graves consequências que tem, para a sociedade em geral e para as mulheres e crianças em particular, especialmente quando está na base de tomar decisões que desafiam a todos nós.

Em suma, somos motivados pelo desejo de colaborar com a Justiça como cidadã responsável e como profissionais especialistas nessas áreas do conhecimento, para trabalhar por uma sociedade mais saudável.

Em relação ao primeiro ponto, embora entendamos que o foco não deve ser colocado na vítima, vendo o surgimento das bases das decisões tomadas, queremos oferecer o nosso conhecimento sobre o impacto traumático que vários acontecimentos e acontecimentos causam nas pessoas e em como eles determinam suas reações. Nesse sentido, nossa contribuição deve lançar luz sobre uma tarefa complexa e delicada como determinar ou não o consentimento da vítima e suas possíveis reações a uma situação como a descrita pelos fatos provados.

Segundo a Teoria Polyvagal de Porges, em uma situação de ameaça de morte, lesão grave ou violência sexual, uma resposta de imobilização é comum quando não é possível fugir ou escapar. Nessas situações, o ramo dorsovagal do sistema nervoso parassimpático é ativado, resultando em uma resposta de imobilização, com batimentos cardíacos mais lentos e redução da sensibilidade à dor. Esta é uma forma rápida de reação do nosso sistema nervoso para tentar sobreviver e minimizar o impacto do evento ameaçador quando, insistimos, não é possível fugir ou escapar. Portanto, em tal situação, não adianta levantar a questão do consentimento ou da resistência, uma vez que essa capacidade será anulada dada a magnitude da ameaça.Esta teoria foi cientificamente comprovada e endossada por especialistas internacionais de grande prestígio em trauma, como Stephen Porges, Daniel Siegel, Pat Ogden e Bessel Van der Kolk, entre outros.

Também não há lugar para perguntar à vítima, nem o fato de ela ter tido uma resposta sexual decisiva, pois nesses momentos o corpo gera substâncias para produzir analgesia contra a dor, sendo dissociado e imobilizado. E, no que se refere à capacidade de resistir e recuperar-se da crise de adversidades, conhecida como resiliência, em qualquer caso seria necessário apoiar a superação que a vítima foi capaz de realizar após a experiência.

traumático em vez de criticá-la ou monitorá-la. O contrário serve apenas para continuar a agredi-la e até contribuir para sua retraumatização.

Quanto ao segundo ponto, como profissionais da psicologia e da psiquiatria, também temos perfeita consciência de que as pessoas interpretam a realidade que nos rodeia a partir dos nossos filtros mentais e emocionais, que por sua vez se configuram em relação à nossa cultura, os vínculos afetivos significativos e nossas experiências de vida.

Nesse sentido, parece-nos profundamente sintomático da sociedade em que vivemos o peso excessivo que o debate tem exercido sobre a vítima e não sobre medidas que possam nos ajudar a alcançar uma sociedade livre de violência que viola os direitos humanos. em geral e as das mulheres em particular. Entendemos que o patriarcado, como sistema cultural e de valores, constitui um quadro interpretativo no qual devemos registrar tanto nossas próprias agressões quanto as leis que regem nossa justiça, bem como as ações dos profissionais que a aplicam. Em uma sociedade, é responsabilidade de todos, desde os policiais aos profissionais do judiciário, atuar com profissionalismo, objetividade e ética, sem questionar situações de violência comprovada ou confundi-las com folia, visto que constitui um celeiro de violência,que denunciamos aqui. Assim, a mulher e, em particular, seu corpo passam por uma reificação que a transforma de pessoa em objeto. Um objeto que, como tal, pode ser usado, não sente nem sofre e não é vulnerável ao sofrimento.

Ao mesmo tempo, os imaginários coletivos que dominam nossa sociedade são bem conhecidos e refletidos nos estudos sociológicos, segundo os quais estabelecemos que as mulheres precisam ser insistidas e aceitar o sexo, mesmo que "em princípio elas não queiram". Acreditamos que essa fantasia arraigada em nossa cultura motiva grande parte dos questionamentos dos juízes nesse tipo de processo, questionando constantemente as reações da vítima. Assim, são essas vítimas que têm de mostrar que “não querem”, resistindo explicitamente, apesar de a paralisia e o bloqueio serem reações automáticas e normais ao pânico do ponto de vista psicobiológico. Longe de contribuir para ajudar a saúde da vítima e o propósito da justiça, consideramos que esta só consegue culpar a pessoa agredida,retraumatize e vitimize-a novamente.

Portanto, à luz das evidências científicas e como profissionais em psicologia e psiquiatria, consideramos fundamental que os laudos periciais emitidos em processos como este tenham o parecer técnico de especialistas e que os profissionais. Tanto a Justiça como as Forças de Segurança do Estado e, em geral, todo o pessoal técnico envolvido neste tipo de caso, recebem treinamento com perspectiva de gênero.

E, por fim, acrescentamos a necessidade urgente de prevenção, incluindo desde a infância uma educação sexual não patriarcal, com uma perspectiva de gênero, transversal e estrutural, que favoreça o cumprimento de direitos e agencia para mulheres, que não relacione violência. como parte da sexualidade, que permite repensar as masculinidades e reconstruir o respeito pela mulher, bem como a promoção de relações de bom trato.

Os signatários subscrevem a presente declaração.

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