O #metoo da violência na infância
Ter sofrido violência na infância tem consequências inevitáveis para a vida? Bem, eu me levanto: o que aconteceu já aconteceu. E eu explico com orgulho de ter sobrevivido.
Caros Insane Minds:
Levei muitas décadas, muitas lágrimas, muitos ostias, muita violência, muita terapia e muita amizade me pegando de novo e de novo, mas, finalmente, vi um pouco de luz ali no fundo.
Eu vivi violência na infância. Assim foi. Uma das coisas que acontece com a violência é que, assim que você nomeia, todos os alarmes disparam e aquela sensação de falsificação, que não foi tão ruim, que o seu também não foi tão grave.
E como todos nós andamos nelas, porque nos faltam histórias compartilhadas para perceber que todos e todos nós que vivemos violência na infância pensamos que a nossa não foi tão ruim.
Que isso faz parte do processo.
Olha, não sei se foi por muito ou por pouco, mas cresci num estado de medo perpétuo e em várias ocasiões, quando já era bastante adulto, senti que a minha vida estava em risco. E não me parece que tenha de ser o que acontece na família, realmente.
No geral, li muitas coisas sobre as consequências de termos vivenciado essas situações e percebi que há algo na história que está faltando. E são nossas histórias.
Porque tudo indica que ter vivido isso nos deixa sequelas para a vida, e você acaba se convencendo de que é uma sequela com pernas, uma pessoa com um defeito, com um vazio que você tem que preencher, mas que nunca vai preencher porque isso já aconteceu e pronto. Você vai me dizer como você volta para preenchê-lo
E eu percebi, ou estou percebendo agora, nos meus 45 anos, que essas narrativas não me fizeram muito bem, porque têm reafirmado a ideia de um traço de violência perpétua, que aquele buraco, que o vazio é real.
E não é.
Aqui estou eu. Isso já aconteceu, já foi. Foi uma experiência vivida que temos que colocar no seu lugar no tempo e no espaço, uma experiência que vivemos para contá-la, que temos que ter orgulho de ter sobrevivido e de estar aqui, de pé.
Que esse buraco é um vazio fantasma, que não existe, que não é real.
Essa violência em si fez-nos acreditar que o buraco existe e não deixamos de lhe dar uma bola. O suficiente. Você tem que devolver o buraco a quem o criou e dizer que não é nosso, que não é meu.
Que eu cresci com falta de amor, ou com um amor violento, que aprendi muito com aquela experiência, que vou explicar quantas vezes forem necessárias porque não tenho mais vergonha, que cada um carrega seu fardo, e esse fardo não é meu.
Que não sou estúpido, que não sou vazio.
Que nada me falta, que não há nada a preencher, que não vou continuar pensando como vítima e me culpando, também, por me vitimar, que não vou continuar pensando se foi por tanto ou por tão pouco. Isso já era.
Ainda estou entendendo todo o processo e não tenho perspectiva de encerramento. Mas agora estou aqui, em um lugar que eu nem suspeitava que existisse.
E estou aqui não só por mim, mas pelos amigos com quem compartilhamos histórias, porque nos contamos, nos falamos, choramos juntos e nos reconhecemos.
A maravilha de ficar em pé, tateando, sim, duvidosa, sim, mas estar ali e terminar de completar nossas histórias do presente, do que conseguimos ser.
Feliz semana, Minds!