O jardim secreto de crianças abusadas

Algumas pessoas conseguem escapar emocionalmente das situações mais adversas. Encontrar um espaço real onde se sentir física e emocionalmente seguro os ajuda a manter o equilíbrio.

Mesmo em nosso mundo ocidental, tão carregado de alimentos e bens, nem todas as infâncias são fáceis e felizes. Existem histórias muito difíceis em que as crianças são pressionadas a crescer sob o jugo de pais severos e autoritários.

Pais que batem neles, que maltratam, que mal lhes deixam a liberdade e que lhes ditam, em todos os momentos, o que podem ou não fazer.

Nesse contexto, é lógico pensar que aqueles que foram submetidos a esse tipo de abuso extremo se tornarão adultos profundamente traumatizados e deprimidos, propensos a cair em qualquer tipo de vício. No entanto, nem sempre é esse o caso.

O segredo das crianças que sobrevivem a infâncias difíceis

Apesar de ter vivido infâncias cheias de violência e humilhação, em consulta, encontrei algumas pessoas com uma resiliência incrível, que conseguiram escapar desse panorama negro a que suas experiências atrozes os levaram.

Obviamente, esses indivíduos sofrem sequelas dos traumas vivenciados na infância, mas, apesar das deficiências, conseguem levar uma vida mais ou menos equilibrada e normal.

Trabalhando em terapia com essas pessoas, vi como todos eles, apesar do abuso e da humilhação que receberam, encontraram um recurso semelhante para se manterem emocionalmente vivos. Basicamente, consistia em encontrar (e valorizar) um espaço pessoal e intocável, no qual se pudesse preservar, por alguns momentos, a sua privacidade e autenticidade.

Um lugar onde conseguiram escapar, ainda que por alguns minutos, da pressão dos adultos. Um espaço em que eles conseguiram ser eles mesmos. Esses momentos de intimidade segura ajudaram essas pessoas a manter a sanidade em uma infância caótica e irracional que nenhuma criança deveria viver.

Gostaria de esclarecer que, quando falo desse espaço pessoal, não me refiro a uma "fuga mental" ou a um lugar imaginário criado como um mecanismo emocional para escapar e se refugiar da realidade. Podemos conceber esse espaço como um “jardim secreto”, um lugar físico real e seguro, onde ninguém controlava ou maltratava essas crianças, no qual elas se sentiam livres.

Embora este pudesse ser um refúgio para o qual vão diariamente ou ocasionalmente, o importante para eles não era tanto a frequência com que o visitavam, mas a possibilidade que a sua existência lhes oferecia.

Seu jardim secreto representava uma rota de fuga.

O jardim secreto era uma forma de manter a sanidade e escapar, mesmo que apenas por um breve momento, das justificativas absurdas dos adultos.

Ali, sozinhas, se sentiam seguras e se permitiam reconhecer as circunstâncias de sua vida como realmente eram: injustas, desproporcionais e, infelizmente, inevitáveis, desde que vivessem com seus pais.

Refúgio de julio

Uma história que pode nos ajudar a entender totalmente esse conceito de "jardim secreto" é a de Julio, um homem que veio ao meu escritório aos 60 anos.

Julio viveu uma infância atroz marcada por um pai alcoólatra e uma mãe obcecada por limpeza e doenças.

Enquanto sua mãe, 24 horas por dia, o perseguia e controlava para que não se sujasse, para lavar as mãos ou trocar de roupa na rua (caso houvesse um vírus aderido).

Seu pai, toda vez que ele bebia, e isso acontecia diariamente, pagava suas frustrações com seu filho, dando-lhe fortes surras.

Na terapia, Julio me contou que ao longo da infância se sentiu prisioneiro de um campo de concentração nazista, à mercê da arbitrariedade dos guardas, pensando que qualquer dia poderia ser o último.

Apesar da dramática situação de sua situação, o pequeno Julio conseguiu encontrar uma brecha no rígido regime de sua casa para ter um momento de privacidade e contato consigo mesmo.

Ele me contou que seus avós lhe deram um cavalo de brinquedo, um daqueles grandes com rodas e uma cadeira de balanço. O garoto gostou tanto que passou grandes momentos balançando nele. Um dia, por acaso, ele descobriu que poderia colocar a mão dentro do cavalo por uma pequena fenda. Não era muito grande e mal podia ser visto, mas foi o suficiente para ele colocar a mão no corpo oco de sua gangorra.

Quando tinha chance, Júlio roubava uns biscoitos da cozinha e os colocava dentro do cavalo. Pacientemente, ela esperou pela hora do cochilo, quando todos estavam dormindo, para se trancar em seu quarto, se aproximar de seu cavalo e desfrutar daquele momento de privacidade enquanto comia seus biscoitos favoritos.

Para Julio, esse era o seu espaço privado, um jardim secreto que ninguém conhecia e que lhe permitiu se libertar, por alguns instantes, do inferno que vivia em sua casa.

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