"Eles nos instruem a ser princesas"
Sílvia Díez
A culpa e a vergonha são grandes armas de socialização que nos lembram constantemente de como devemos ser. Além disso, como somos constantemente informados de que não valemos a pena, internalizamos que não somos suficientes.
Entrevistamos a psicóloga María Fornet, que em seu livro Therapeutic Feminism (Ed. Urano) propõe que as mulheres façam uma jornada transformadora para se libertar dos constrangimentos educacionais e conseguir o que desejam.
“A sociedade patriarcal envia mensagens contínuas às mulheres para que se considerem incompletas e de pouco valor”, diz María Fornet.
“Quando você trabalha com grupos de mulheres, vê claramente que a experiência de ser mulher é universal e que existem padrões e conflitos comuns a todas elas originados pelo sistema patriarcal em que estamos todas imersas”, conta essa feminista que trabalha há anos. em Londres ajudando a empoderar as mulheres.
Quais são esses conflitos e padrões comuns?
A escravidão da aparência física é universal e comum em todas as mulheres. É um espartilho que nos classifica em um pensamento binário: podemos ser bonitos ou inteligentes; santas ou promíscuas … As mulheres não têm permissão para serem complexas e multifatoriais.
Essas limitações restringem nosso universo de possibilidades para nos libertar. Desde a infância somos ensinados a ter uma certa aparência física se quisermos ocupar um espaço público.
Esses cânones de beleza são um espartilho que não deixa espaço para as mulheres serem o que queremos ser.
A questão da beleza tem sido um grande obstáculo para eu superar. Venho de uma família muito conservadora. Fui educado em uma escola só para meninas, em que a aparência física era muito importante. Passei muitos períodos da minha vida contando calorias para perder peso e tentando, sem sucesso, me adequar a esse padrão de beleza.
Nós, mulheres, sabemos que usamos esse espartilho?
Não. A discriminação e a desvalorização são internalizadas de tal forma que somos nós mesmos que acabamos nos marginalizando sem ter consciência disso.
Um exemplo: as mulheres autônomas cobram menos pelos seus serviços do que os homens, ou seja, mesmo que ninguém lhes diga o que cobrar, elas mesmas se subestimam e optam por cobrar menos que um homem. Tendemos a nos ver insuficientes.
Quando conseguimos um emprego, pensamos que cometeremos erros constantemente.
É a chamada "síndrome do impostor", consequência direta de todas as mensagens que recebemos desvalorizando a nós mesmos.
Esse é um problema muito comum de confiança nas mulheres, pois elas assumiram a narrativa transmitida pelo sistema como sua.
O amor romântico é outra crença que nos escraviza?
Efetivamente. O amor romântico é um castelo com o qual as mulheres são escravizadas. Na verdade, a instituição do casamento foi e continua sendo uma forma de tornar as mulheres escravas.
Mulheres - e até meninas - ainda são compradas e vendidas em todo o mundo para casamento.
O amor romântico é o que aprendemos desde tenra idade como o que deve ser nosso objetivo, nosso destino final.
E parece que o que vivemos antes é um ensaio até que chega o momento em que finalmente nos realizamos casando e tendo filhos. Eles nos instruem a ser princesas.
É um terreno fértil para lembrar a mulher que, sozinha, está incompleta. É a mensagem que a sociedade nos transmite.
A sexualidade é outra arma socializante contra as mulheres?
Vivemos em uma sociedade hipersexualizada que usa constantemente o corpo das mulheres. E confundimos a mensagem de empoderamento com o fato de ocupar um espaço público quando recebemos o olhar masculino. Devemos questionar se isso é assim.
Por outro lado, homens e mulheres estão cada vez mais polarizados. A cada dia as mulheres precisam de mais coisas (sobrancelhas, unhas de porcelana, cílios postiços …) e os homens, mostram uma aparência com mais força.
Feminização e masculinização são fortemente enfatizadas desde tenra idade, sem deixar tempo para cada pessoa explorar o que quer, o que gosta.
O que uma mulher pode fazer para superar essas limitações?
Escreva uma carta para o seu futuro eu, para a pessoa que você gostaria de ser depois de cinco anos. Se a autoconfiança fosse absoluta e o que pensavam dela não a afetasse, como seu comportamento mudaria a partir de agora? Como isso se moveria? Como você falaria consigo mesmo neste caso? Que tipo de coisas você começaria a fazer?
É uma questão de nos conectarmos com nós mesmos e nos concentrarmos em dar um pequeno passo a cada dia. "Todos os dias, faça algo que te assuste", disse Eleanor Roosevelt.
Também é uma boa ideia manter um diário pessoal para expressar como você se sente o tempo todo.
Criatividade é cura: ela nos leva de volta à esfera do jogo, nos torna mais fácil remover aquelas camadas impostas pela educação, desaprender e nos reencontrar com olhos de uma menina sem deveres ou preconceitos.
Podemos reescrever nossa história?
Não podemos inventar uma nova vida, mas podemos entender como construímos nossa identidade, destacando certos momentos de nossa história em vez de outros.
Podemos começar a representar o presente e o futuro de outro lugar. Isso mudará a forma como nos sentimos hoje e como abordamos o futuro.
Apesar das mensagens que chegam até nós, não somos cem por cento responsáveis por nosso destino, nem cem por cento vítimas. Navegar entre esses dois extremos permite que você alcance a felicidade.
E qual é a beleza de ser mulher?
Venho de uma pequena cidade da Andaluzia cercada por mulheres fortes, corajosas e resilientes, mas onde não se falava de feminismo.
Quando cheguei a Londres, esse ambiente foi muito fortalecedor para mim: ele me lembrou de tudo o que outras mulheres fizeram por nós e tudo o que ainda temos que fazer, a responsabilidade que temos conosco e com as outras mulheres.
Para mim, a beleza de ser mulher é justamente que estamos todos nos libertando e assumindo a responsabilidade de que as futuras gerações tenham uma vida melhor.