"Sem compreensão de leitura você não pode fazer matemática"

Gema Salgado

Doris Sommer é fundadora da ONG Agentes Culturales, onde desenvolve o protocolo pedagógico Pré-Textos há 35 anos, nos Estados Unidos e na América Latina. Este protocolo foi classificado pela UNESCO como "Educação para a Paz".

Hugo Blues

Doris Sommer elaborou um protocolo pedagógico, Pré-Textos, com o objetivo de promover a criação artística através da compreensão leitora e assim favorecer os valores pessoais e cidadãos.

Ela é professora de Harvard, mora em Boston e fala espanhol perfeitamente, resultado de seu relacionamento com seus vizinhos afro-caribenhos no Brooklyn durante grande parte de sua vida.

Ele criou esse protocolo inspirado no Teatro do Oprimido do dramaturgo brasileiro Augusto Boal, nas engenhosas ações artísticas para a transformação social do filósofo e político colombiano Antanas Mockus e outras iniciativas populares, como as editoras de papelão.

Esteve em Barcelona a convite da EduCaixa, ministrando vários workshops, um deles dirigido a professores universitários, educadores, assistentes sociais, artistas e terapeutas. Tivemos o prazer de entrevistá-la.

- Em que se baseia este método pedagógico, Pré-textos, e o que exatamente se consegue com a sua aplicação?
-Pré-textos é um protocolo pedagógico simples, tem quatro fases a seguir: ler em voz alta um texto, fazer perguntas sobre o texto lido, realizar uma atividade artística sobre esse texto e refletir sobre essa atividade e o que foi lido. Todos no grupo fazem a mesma atividade artística para ver que todos produziram um trabalho e depois de fazer o trabalho fazemos um círculo de reflexão.

É um protocolo transversal e qualifico-o de "acupuntura pedagógica", uma vez que se baseia no estímulo à autonomia criativa a partir da compreensão da leitura de um texto arbitrário.

Nesse contexto, o professor passa a ser um facilitador que orienta o grupo de leitura a desenvolver novas ideias ao longo de cada sessão e um projeto artístico. Não importa o texto que usamos. As pessoas sabem que texto pode interessá-las e também sabem que arte desejam desenvolver para interpretar esse texto. Podem ser textos literários, história, pesquisa médica, astrofísica, ciências sociais … e a expressão artística pode ser teatral, musical, plástica, corporal e de todas as áreas da arte.

-E qual é o ponto de partida?
-O princípio é simples, começa a partir da indicação "Faça este texto". Com esta indicação estamos aludindo às competências intelectuais e ao mesmo tempo desenvolvendo competências criativas, ao interpretar e fazer algo criativo com o texto e também os sistemas socioemocionais intervêm porque me envolvo emocionalmente na minha obra de arte e vejo que os colegas em classe ou no workshop eles fizeram coisas muito diferentes com o mesmo assunto. Então, acabo me interessando pelos meus companheiros, ao invés de competir com eles. E por me interessar pelos seus trabalhos, também acabo por admirá-los e contar com a sua participação colaborando em outros tipos de abordagens. Assim, com a indicação "Faça esse texto", conseguimos ligar o intelectual, o emocional,criativo e social.

-Este protocolo já é aplicado em escolas, institutos e universidades? Em quais assuntos?
-Sim. Por exemplo, treinamos alunos de pós-graduação em Harvard que precisam ensinar e buscar metodologias para facilitar uma aula de Literatura, Ciências, História … Também é usado em escolas públicas e privadas em Boston; No México, vamos iniciar um programa de treinamento em escolas de Educação, para preparar professores.

Na Colômbia, trabalhamos em um programa de promotores da paz; somos reconhecidos pela UNESCO como Educação para a Paz … há vários exemplos. No Paraguai vamos fazer um workshop para juízes e advogados como parte da campanha contra a corrupção, porque quando estamos todos em um círculo, quando somos todos sensíveis e vulneráveis ​​uns aos outros e acabamos nos admirando, é difícil enganar.

-Também pode ser usado para matemática e física?
-Também. Um dos principais problemas que as crianças não sabem resolver problemas matemáticos, que não são apenas operações, é que elas não entendem o enunciado. Qual é a pergunta, quais são os dados? Essa forma de identificar informações só pode ser feita se você tiver compreensão de leitura, sem compreensão de leitura você não pode fazer matemática porque matemática é solução de problemas.

Há algum tempo, trabalhamos em um projeto de astrofísica com um texto sobre trajetórias de tripulações que iam a Marte.

Eu não entendia nada, estava ali como facilitador, não como cientista. Quando perguntei a um grupo de meninos dessa classe que eram do litoral da Colômbia, litoral do Pacífico: “O que vamos fazer com este texto?”, Um jovem disse: “Bem, já que existem três trajetórias, por que não nós dançamos eles? " Pedimos a um cientista que ajudasse a criar uma coreografia e, no final, acabamos dançando as trajetórias.

Outro dia fizemos uma prática mais intelectual com o texto e acabamos entendendo muito, até eu, que não tinha ideia. Convertemos texto em matéria-prima para fazer arte. Imagine uma aula de matemática ou física com dança, música, desenho … Uma coesão impressionante se estabelece porque não se compete com o parceiro. Você aprende brincando.

-Em uma conferência ele disse que começou a criar a ONG Agentes Culturais em Harvard porque viu muito pessimismo na Universidade. Você pode explicar isso para mim?
-Bom, durante a minha formação como estudante pude observar que as ciências humanas e sociais tendem a ser pessimistas. Costumamos dizer que o mundo está errado, que não há nada a fazer, que aqueles que tomam decisões sempre as erram. Olha a pressão do capitalismo aqui, do socialismo ali … muita crítica e crítica sem proposta é irresponsável. Tenho em minha casa um cartaz com a palavra protesto em letras maiúsculas, mas acima da sílaba "tes" -de protesto- coloquei a sílaba "portanto" para transformar o protesto em uma proposta.

Sem essa sobreposição, o protesto é feito de má-fé porque ganhamos notas em nossas carreiras acadêmicas por críticas e, ao não fazer nada, continuamos a nos beneficiar de situações insuportáveis ​​e coisas que fazem sofrer os outros. Assim, Agentes Culturales é uma iniciativa que se dedica a aplicar o que aprendemos nas humanidades e nas artes, para intervir e criar mudanças. Ou pelo menos, para lançar a possibilidade de uma mudança através de diferentes saberes: como mudar o baixo índice de alfabetização, que obviamente influencia o índice de pobreza, saúde, criminalidade … E como sou professor de línguas e Literatura, minha forma de influenciar todos esses desafios sociais é por meio da alfabetização.

-Pré-textos foi implementado em Harvard, você começou a usar lá?
-Pré-textos nasci em Lima, Peru, onde fiz um pequeno curso sobre Agentes Culturais, onde destacamos grandes lideranças políticas que também são artistas. Acredito que liderança exige arte porque a arte em si é mudança e se você não muda nada você não é um líder, você é um seguidor, então grandes empreendedores, grandes líderes, pesquisadores médicos, em qualquer coisa, também são artistas.

Arte significa simplesmente artifício que surpreende e detém as pessoas e as faz pensar e agir positivamente.

Assim, os pré-textos começaram em Lima quando dei aquele curso sobre Agentes Culturais e entre os artistas com missão social que participaram estavam duas jovens, duas mulheres que tinham fundado uma editora, Sarita Cartonera. Cartonero significa coletor de lixo, vendedor de papelão. Eles me fizeram um comentário que mudou minha vida.

-O que eles disseram que foi tão inspirador?
-Em Buenos Aires, onde começaram a falar de editoras de papelão, com a crise econômica de 2001 não houve livros novos e um poeta e um pintor abriram uma loja abandonada e passaram a comprar papelão usado das fabricantes de papelão e a incluí-los na editorial O que a editora fez foi comprar papelão, decorar cada capa de forma sui generis e pedir material inédito dos melhores escritores do país para publicá-lo a um preço baixíssimo na rua e a um preço mais alto na internet.

Assim, os cartoneros e os artistas participantes sobreviveram à crise com bastante dignidade. Estas duas jovens da Sarita Cartonera vieram ao workshop e nos disseram que tinham um desafio maior do que o de Buenos Aires. Qual era? Que as crianças não gostem de ler … Assim, a editora pode produzir livros baratos e bonitos, mas sem clientes não pode sobreviver, com os quais criaram: “também temos que produzir leitores e não apenas leitura”.

E eu, como professora de literatura, olhava para eles e dizia: “ Como podemos produzir leitores? ” Eles me responderam: “Senhora, não é muito difícil: deve-se tratar um livro como matéria-prima e não como um objeto sagrado”. E esse é o comentário que mudou minha vida. Daí surgiu o Pré-Textos, uma pedagogia para tratar o texto como matéria-prima e não como texto sagrado.

-Ler em voz alta é outra prática popular que a inspirou…
Também. No Caribe, os fabricantes de tabaco não queriam ficar entediados e contrataram um leitor profissional para ler para eles durante a manhã e o leitor tinha uma boa voz, era um locutor de rádio, um ator … e os próprios trabalhadores selecionaram o livro que queriam ouvir. Como se fosse um audiolivro, mas com a vantagem de ouvir todos juntos, porque depois eles comentariam.

Muitas vezes foi um seminário para analfabetos que ouviam, mas todos acabaram aprendendo muito.

Se você conhece a marca de tabaco Romeo y Julieta ou Montecristo ou Hemingway, os trabalhadores do tabaco gostavam de filosofia, literatura … então os Pré-textos são uma cesta de reciclagem de belas práticas populares já existentes desde os tempos antigos e eu adicionei uma ou mais dois, acrescentei o exercício de "rodeios".

Todos os professores em minha vida e nas vidas atormentadas dos alunos do mundo nos disseram para não rodeios. E aí ficam se perguntando por que não lemos, por que não temos curiosidade … Então convidamos as pessoas a darem uma volta pelo mato, a encontrar um texto que tenha a ver com o texto que todos nós estamos lendo juntos, então trabalhamos nosso ressentimento com isso indicação para não rodeios.

- Passar da estética ou das artes plásticas para trabalhar a razão e a crítica é verdadeiramente revolucionário para os sistemas educacionais atuais, onde prevalece o científico ou o especializado como útil ou produtivo … da Educação esta proposta?
-Há muita resistência e a piada é que as disciplinas de tecnologia e ciência buscam as habilidades do século 21 que são: criatividade, pensamento crítico, colaboração e comunicação. Quem não escreve bem não formula o problema a ser trabalhado; Quem não lê bem não entende o problema, então busca essas habilidades, são super importantes.

-Representar nossos dramas e nossas paixões a partir da crítica artística e textual pode nos tornar mais livres, autocríticos e empáticos e apaziguar o ego, que hoje corrompe o mundo. É por isso que a UNESCO deu o nome de Pré-Textos de Educação para a Paz?
-Sim Sim. Viu-se a diferença entre uma coreografia militar, com crianças sentadas em fileiras, e uma coreografia em círculo. Crianças cujos pais têm recursos para mandá-las para escolas particulares podem acabar em Montessori, Waldorf, Reggio Emilia …

Todas essas opções que hoje são de elite começaram nas favelas. Agora, porém, eles custam muito dinheiro.

E lá as crianças trabalham com projetos, sentam em grupos, tem uma roda, tem mediadores, facilitadores e não autoridades. É a educação do futuro, mas agora está reduzida aos bairros ricos, da elite. O que os pré-textos pretendem fazer é destilar todo esse percurso experiencial em um protocolo artístico disponível para todos.

-O que esse método educacional pode contribuir para um mundo globalizado e superficial, baseado em tecnologias (os jovens estão muito viciados no celular) …
-Abra o espectro, que o professor não seja a voz unilateral que diz: você tem que fazer tudo isso, Em vez disso, é ampliado, que haja pensamento crítico onde todos nós acabamos nos enriquecendo com as diferentes contribuições recebidas e sendo mais competentes do que competitivos, mais colaborativos.

Se alguém começa a fazer uma pergunta ao texto, já começamos a desenvolver a capacidade crítica e o gosto pela leitura. Uma pessoa não apenas recebe informações, a sujeita a escrutínio, mas o escrutínio é sobre as informações, não sobre a criança. Os pré-textos são um convite para que as crianças se regulem e conheçam outras formas de aprendizagem.

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